sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Crise: Uma reflexão

Portugal vive hoje tempos assoberbados. Vem escrevendo uma página sombria da sua quase milenar História. Se a afamada crise não surgiu de rompante, cozinhada nos corredores dos grandes bancos de investimento transnacionais com a complacência dos governos democraticamente eleitos, não é menos verdade que o país se deixou arrastar pelo canto da sereia do crédito fácil, inebriado pelos dinheiros de Bruxelas, desleixando os sectores económicos tradicionais, a indústria, a agricultura e as pescas.
 
Hoje, Portugal é um país à deriva, tristonho. Nesta hora sombria, o país naturalmente belo e paisagisticamente diverso contrasta com a melancolia das gentes que calcorreiam as suas ruas e praças. Nelas já não se respira ares de esperança, antes brota um sentimento quase generalizado de angústia, de incerteza, de desconfiança, de descrença naquilo que até um passado bem recente eram o grande sustentáculo das suas vidas: o trabalho com horizontes, os filhos na escola com um futuro à vista, enfim, o acesso às pequenas folestrias da vida que os pais e avós nunca tiveram.
 
Hoje, grassa na sociedade portuguesa aquilo que de pior pode acontecer a uma sociedade organizada: Portugal é, com mais ou menos culpa no cartório, um país açambarcado pelo medo.
 
Este medo tem sido transposto para a nossa vida em sociedade numa dimensão até agora desconhecida. Pelo menos em tempos democráticos. Este medo tem alimentado a descrença em nós próprios, tem tolhido a nossa capacidade de acção perante as circunstâncias e perante os tremendos desafios que se perfilam.
 
Este medo tem amordaçado a capacidade crítica e de reacção do país, tanto na esfera pública como na esfera privada. Em grande parte das empresas e das organizações, grassam sentimentos de desconfiança entre os colaboradores, e entre estes e as suas chefias superiores ou intermédias. Estes tempos conturbados têm sufocado a liberdade criativa e crítica perante problemas e ineficiências que regularmente surgem. O que vem crescendo, como erva daninha, isso sim, é um silencioso e subentendido apelo para a prossecução do trabalho dentro de limites previamente balizados, sem incómodos alaridos ou demais obstinações.
O desemprego é uma hemorragia social que, atingidas as actuais proporções estratosféricas contribui inapelavelmente para esta deterioração do clima social. Tem acirrado os portugueses uns contra os outros, tem espicaçado sentimentos de cobiça e inveja e tem, sobretudo, alimentado o ciclo-vicioso que tão é nefasto para Portugal, essa doença crónica de que Portugal padece há séculos: o chico-espertismo, a pequena irregularidade, o fechar de olhos, o amiguismo e a cunha. Esta condição social do país é, no quotidiano, quase palpável. Esta crise tem tanto de económico e financeiro como de comportamental.
São tempos complexos e contraditórios. A vivência do presente, por manifesta impossibilidade de avistar um futuro previsível, alimenta os seculares males do país. Logo hoje, que Portugal tanto precisava de um corte com as condições do passado, dá impressão que é impossível mudar verdadeiramente.
Não sei se estamos realmente interessados em mudar. A crise veio acirrar visões imediatistas, tanto no plano das opções políticas que têm vindo ser tomar, como nas escolhas e exigências pessoais com que somos confrontados. Hoje, só o presente imediato parece ser opção. Hoje, encolhem-se os ombros perante o deserto de oportunidades que nos é servido.
A vozearia não aponta um rumo aceitável de longo-prazo. Prevalecem os interesses sectários sobre o interesse geral do país. Os interesses e expectativas individuais, admitamos, são tendencialmente enquadrados em interesses de classe, que escutados individualmente não apresentam soluções de ruptura, antes apontam desesperadamente aos confortos do passado recente que nos trouxe à ruína.
Não existe, em Portugal, massa crítica suficiente na sociedade civil capaz de pensar o destino colectivo do país, capaz de levar a cabo uma reflexão profunda e, sobretudo, neutra sobre as mudanças a efectuar no longo-prazo. Não há consenso nem esclarecimento suficiente sobre o que deve permanecer e o que deve ser combatido, que sectores de actividade devem ser prioritários para que Portugal seja um país sustentável, viável e com um futuro.
Assiste-se, pelo contrário, a um frenesim delator nas redes sociais, a muita energia gasta em acusações contra a classe política (o confortável “eles”), aos seus roubos e abusos, às pequenas minudências do dia-a-dia da nossa vida pública, estridência que a crise de resto acicatou, mas que é inócua na altura de resolver problemas.
Hoje, os portugueses sabem que têm que fazer sacrifícios mas desconfiam deles. Sabem que algo de terrivelmente mau veio acontecendo nas últimas décadas. Sabem, no seu íntimo, que a mudança teria, algum dia, de acontecer. Só não sabiam que o céu lhes iria cair sobre a cabeça. Sabiam, lá bem no fundo, que algum dia o esbanjamento de tanto dinheiro público teria um preço. Sabiam que o país não tinha uma economia suficientemente robusta nem inovadora para aguentar tempos difíceis. A queixa sobre a inoperância e corrupção, pequena ou grande, da classe política central e do poder local foi sempre um discurso omnipresente, tanto em tempos de vacas-gordas como em tempos de crise. Nada foi feito.
A crise coloca em risco não só o bem-estar material dos portugueses, mas também a ordem constitucional vigente e a paz social. Hoje, é crença generalizada de que uma ruptura é incontornável. Ela surgirá, não se duvide. Mas é preciso que seja a ruptura certa, que aponte caminhos de futuro e que não derive somente do actual clima de crispação, revolta e denúncia. É preciso que seja uma ruptura esclarecida, racional, em que cada um assuma o seu papel como cidadão responsável. A figura do cidadão é a mais frágil na relação entre político e poder económico, e assiste-lhe o direito à intervenção. O cidadão pode e deve exigir mudanças. Mas deve esforçar-se por ver o todo e não a parte, deve esforçar-se por pensar colectivamente os problemas e por ser parte de soluções conjuntas. Deve procurar ser mais informado e mais consciente das suas decisões. Só assim poderá ser agente de uma verdadeira mudança: exercendo o seu poder soberano de forma mais esclarecida e preservar a vida colectiva em liberdade. Com cidadãos assim, a democracia estaria salva. Tudo o que vá para além disto é uma obscura incerteza, um terreno minado que todos agora enxergamos, mas que poucos estarão na disposição de experimentar.
Hoje, há necessidade de revolta, mas não de revolução. Ou antes, esta seria a verdadeira revolução.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Beginners (2011).


“You are only two years older than me, darling, where have you been all my life??” Foi desta forma que Christopher Plummer, do alto dos seus 82 anos, reagiu à entrega do Óscar de melhor actor secundário para gáudio da plateia, que lhe dedicaria um sentido e prestimoso (e merecido) aplauso. Plummer chega finalmente à almejada estatueta dourada, aquela que tantas vezes foge aos mais ilustres, pela sua prestação em Assim é o Amor, de Mike Mills, onde contracena com Ewan McGregor e a francesa Mélanie Laurent. É a consagração de um grande senhor do cinema.
Não fosse o prémio para este veterano actor, e talvez este fantástico filme passasse completamente ao lado do público português. Continua a ser lamentável que filmes assim não sejam alvo de uma maior e mais equitativa distribuição pelas salas de cinema portuguesas.
Plummer é Hal, pai de Oliver (Ewan McGregor), do qual nunca foi próximo. Viúvo, sente necessidade de revelar a Oliver a sua homossexualidade, reprimida ao longo de 44 anos de casamento. A confidência tem o inesperado efeito de aproximar pai e filho, e serve de mote para que Oliver encete uma viagem interior de auto-descoberta que o vai levar a quebrar barreiras e a redefinir o é para si o amor.
Beginners – título original que alude às novas experiências em torno do amor que aguardam os personagens – destaca-se, acima de tudo, pela sua enorme honestidade. É um filme sem subterfúgios, daqueles que desde os primeiros minutos pegam no espectador ao colo para não mais o largarem até final. Assim é o Amor não tem outra pretensão que não a de celebrar o sentimento que faz de nós aquilo que somos, seres humanos com defeitos e virtudes, e afinal o único capaz de obliterar a perspectiva da nossa própria finitude e de conferir um sentido à nossa passagem por este mundo. Especialmente quando retrata um romance homossexual de um octogenário “saído do armário”. Assim é o Amor relembra-nos, oportunamente, as múltiplas formas e manifestações que o amor pode assumir, e o que podemos apreender das vivências daqueles que nos são mais próximos. O filme de Mills – semi-autobiográfico como o próprio admitiu – tem o grande mérito de captar com a alvura necessária os desafios psicológicos advindos do amor: a homossexualidade de Hal faz com que Oliver reflicta no percurso de vida da sua mãe e na relação que esta estabelecera consigo, à qual vai atribuindo novos significados.
Por fim, o filme não deixa de beneficiar das magníficas interpretações de Plummer, McGregor e Mélanie Laurent, esta última irradiando um brilho a que é impossível ficar indiferente, e que disputa a atenção e a reverência do espectador com as fabulosas aparições de Arthur, o Jack Russell de Oliver, um cão apegado ao dono que não fala mas cujos mordazes pensamentos perpassam para a tela, colocando a cereja no topo do bolo neste Assim é o Amor.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Autobiografia de Niculae Ceausescu (2010)

A “Autobiografia de Niculae Ceausescu” apresenta um retrato impressionante do regime que durante décadas atormentou e amordaçou o povo romeno. O filme de Andrei Ujica mostra-nos os bastidores da tirania, do seu inexcedível cinismo e da terrível encenação do seu poder.
Esta “Autobiografia” reflecte fielmente a teatralidade do regime, das suas práticas, das bases nas quais assenta o seu poder. É um documento prodigioso, um deslumbrante “flashback” visual de uma grande parte do regime comunista romeno, centrado na sua figura cimeira, e exibindo o maniqueísmo do regime em toda a sua plenitude. Sublinhe-se a forma como regime instrumentaliza os espectáculos públicos e as grandes concentrações de massas para fins propagandísticos, com a pretensão de legitimar o comunismo como o destino final do país.
Outros líderes comunistas como Mao, Dubcek ou Kim Il-sung aparecem como personagens de um enredo que ultrapassa as suas figuras para se centrar nesse “corpus” político que é o internacionalismo comunista e no aparente espírito de solidariedade e cooperação entre os seus regimes. Impressionam as recepções a Ceausescu em Pequim, e particularmente em Pyongyang, que não deixam de remeter para a dimensão do poderio do estado totalitário comunista e para a consequente obliteração do cidadão enquanto ser pensante.
Ocasiões como os seus aniversários, o doutoramento honoris causa atribuído pela Universidade de Bucareste, ou a aclamação de que foi alvo no 12º Congresso do Partido Comunista após uma voz contra (que terá acontecido a esse homem?), confluem numa estratégia de encenação tendente a alimentar o culto da personalidade que caracterizou o regime do ditador. É transversal ao filme uma preocupação em fazer notar a imagem de catarse colectiva em torno da sua figura, em todos os seus discursos e actos públicos, como se a absoluta clarividência e capacidade de decisão perante os problemas e os desafios do país fosse, a ser possível, um exclusivo seu.
O filme de Ujica coloca-nos perante um ditador que apreciava a visibilidade pública. Através de aparições milimetricamente preparadas, a sua imagem de força e poder não era descurada em nenhuma ocasião. A propaganda mostra Ceausescu em permanente contacto com populares, que maquinalmente lhe vão endereçando felicidades, saúde e uma vida longa.
Talvez resida aqui o maior mérito de Ujica: o de conseguir desmontar a imagem de Ceaucescu e a sua linguagem política virando-os, com meritória minúcia e precisão, contra o objectivo para o qual foram concebidos.
Trata-se de um grande “flashback” biográfico imaginado por Ceausescu aquando da sua detenção, em finais de 1989, deixando sub-reptício o tipo de evolução social de um país governado com mão de ferro ao longo de quase 25 anos, e a plasticidade e mecanicismo do seu regime – uma receita sobejamente comum a outros regimes congéneres. A sua imperturbável expressão facial por ocasião da sua captura demonstra inequivocamente uma nítida altivez, colocando a nu a sua arrogância, e uma perturbadora obstinação, que acabem por incorporar a natureza férrea do seu regime. Assim ditam estes hipnotizantes 180 minutos.
O “filme ficção” de Ujica faz acreditar que a ideologia política de que as ditaduras se servem pode ser de tal ordem poderosa que se torna capaz de reproduzir nos seus líderes um grau de fanatismo tal que os acompanha até ao momento em que encaram a morte.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Os Não Alinhados.

É este o nome da nova aventura pela blogosfera a que me proponho. Uma aventura colectiva, pensada e construída com amigos de longa data. A formação comum na área da Ciência Política e das Relações Internacionais serve de leitmotiv para o blogue mas não só: o Não Alinhados não se cingirá exclusivamente a esse domínio do saber, antes versará sobre os interesses pessoais de cada um dos seus escribas, incluindo as áreas do Marketing, da Economia e da Gestão.
A palavra de ordem do blogue é liberdade, pois acreditamos que só assim faz sentido. Procuraremos ser oportunos nos comentários, nas análises, na expressão de opiniões sobre o que vai acontecendo em Portugal e no Mundo, para o bem e para o mal - e, porque não, na partilha de algumas experiências pessoais que julguemos de interesse para quem nos visite.
Quanto ao meu querido Escrito na Pedra, já andava sonolento e vai agora entrar em hibernação. Convido todos os leitores deste blogue a visitarem o novo sítio deste escriba na Internet, um sítio que se espera mais dinâmico e funcional, em prol da boa discussão de ideias, mais motivante tanto para leitores como para quem escreve.
Vemo-nos aqui. Até já.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A Single Man.


Uma estreia auspiciosa. É o mínimo que se pode dizer da que Tom Ford teve atrás das câmaras, na adaptação de A Single Man, romance homónimo de Christopher Isherwood, uma história passada no ano politicamente quente de 1962. O reverenciado estilista norte-americano rubrica uma obra de fazer cair o queixo, onde nada parece falhar. Todo o filme é uniforme, uma sinfonia de sentimentos que vem cobrar ao espectador a desfaçatez de, num laivo de preconceito, alguma vez ter duvidado do talento de alguém que desenha roupas. Não se duvide pois, já que A Single Man é um daqueles filmes que nos surpreendem não só pelo nome de quem realiza, mas por uma conjugação simbiótica de dois actores soberbos, Colin Firth e Julianne Moore. Se Firth, na pele de um professor universitário homossexual que perde o amor de uma vida até aí perfeita, enche completamente o ecrã; Moore aparece fulgurantemente como a sua cara-metade, alguém com quem partilha um passado comum, embora um pouco menos tortuoso.
O grande mérito de Ford (que surpresa mais uma vez!) reside na captação perfeita do tormento de George Falconer (Colin Firth), e da fragilidade e permeabilidade do seu estado de alma ao longo daquele que será o seu último dia de vida. O jogo de cores que Ford faz trespassar para fora do ecrã tem uma força tremenda, e realça ainda mais a já de si espantosa interpretação de Firth. Ford consegue também, e o filme não o esconde, transportar os seus dotes de profissional da moda para a tela, num trabalho meticuloso de design, notoriamente assente numa produção de época imaculada. Os ambientes, as interpretações e, não esquecendo, a glamorosa banda sonora, conferem ao filme um poder hipnotizante sobre o espectador, cedo rendido à sua beleza.
Tremendamente emocional, A Single Man faz a apologia dos mais profundos sentimentos humanos, a dor, a perda, o vazio, o amor; alcançando essa quase inenarrável proeza de acometer na mesma obra uma realização tão pessoal e tão viva, conjuntamente com uma estética carregada de charme e de significado combinação que só poderia resultar num filme simplesmente...arrebatador.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A Questão Quirguize.

Foi hoje publicado no blogue Da Rússia, um texto da minha autoria sobre os recentes tumultos no Quirguistão. Esta república centro-asiática tem sido notícia de primeiro relevo nas últimas semanas, devido à queda do governo de Kurmanbek Bakiyev e à ameaça iminente de guerra civil.
Os meus agradecimentos ao autor do blogue em questão, o jornalista da Agência Lusa José Milhazes.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Quando a Educação é Esquecida.

Esta notícia fez-me hoje recordar não apenas os anos de secundário mas, infelizmente, os de licenciatura e até o de mestrado. Volta-me à memória a chocante desfaçatez com que a falta de conhecimentos e de preparação básica minam um espaço universitário que deveria ser de discussão, em que a aprendizagem deveria apelar constantemente ao espiríto crítico e de análise dos alunos, e em que que a avaliação fosse um processo rigoroso mas acima de tudo justo e criterioso. Não são assim as universidades neste país, antes um ilógico prolongamento do ensino secundário, e onde são imaculadamente reproduzidas as suas insuficiências.
Poderia falar na minha experiência pessoal, as machadadas no conceito de educação que presenciei in loco, nas vezes que fingi que não ouvi ou que não quis perceber o que ali estava a acontecer. Episódios graves que atestam o referido na notícia, perpetrados por vários agentes educativos, conhecidos e lamentados por todos, apenas com a salvaguarda devida de que tudo continua exactamente na mesma com tendências a não melhorar.
O sistema educativo deste país está minado desde o ensino básico até ao superior, com problemas que vão desde a falta de exigência, ao laxismo que permite que alunos transitem de ano quando não o poderiam nunca; à secundarização da importância dada ao cultivo das competências essenciais para fazer face ao ensino universitário, como sejam a capacidade de relacionar conceitos, ou de separar o essencial do acessório ao longo do processo de raciocínio. Até à universidade, o ensino é superficial, virado quase exclusivamente para a memorização e para a verbalização sem critério do veiculado nos manuais. Estas falhas estruturais, das quais menciono apenas algumas, crónicas e enraízadas ao longo de tantos anos, desembocam na má preparação dos alunos para a ensino superior.
Já as universidades, parecem-me irrevogavelmente afectadas pelos problemas dos ciclos de ensino anteriores e deles não parecem conseguir libertar-se. Aos poucos, o grau de exigência foi decrescendo, em todo o lado é permitido o recurso a subterfúgios de vária índole que atestam a incapacidade de fiscalização do sistema, e os tiques de criancice mal curada saltam à vista em qualquer universidade. Esta é a realidade que de nada adianta escamotear.